“Todos os anos, a dia 30 de Abril, passava-se
algo muito estranho nas casas da minha vila alentejana e que eu, até certa
altura, pensei passar-se só em minha casa, porque avisados pelos meus país e
avô, este ritual anual familiar era para ser guardado em grande segredo.
Cerca da meia-noite, éramos
acordados pelo meu avô e a minha mãe, a dar-nos um cálice de licor de poejo e
um bolo muito pequenino chamado "broinha". Antes de bebermos o licor
dizíamos juntos “viva, não deixamos entrar os burros no Maio”. O avô
emocionava-se sempre até às lágrimas e eu continuava a não entender este ritual
quase sagrado. Os mais velhos, diziam que Maio era o mês dos burros e portanto
aquele brinde à meia-noite, era-me estranhamente natural.
Numa tarde de Verão, quando todos
dormiam a sesta, eu lia um livro do baú do avô (livros esses que depois de
lidos às escondidas eram guardados no baú e tapados com uma toalha de linho
antiga), o meu avô disse-me: «agora que estamos aqui sozinhos quero contar-te
uma coisa, mas quero que saibas que é mais um segredo dos nossos».
Perguntei-lhe: «Avô, segredo igual aquele que o avô me contou, quando lia o
jornal O Século e ao ler a frase de Salazar "rapidamente e em força"
e o avô disse “fascista dum cabrão"! E de seguida explicou-me o que queria
dizer fascista?» «Exactamente, minha querida. Então a partir de agora, vais
saber o verdadeiro significado deste brinde secreto que se passa à mesma hora,
em casa de todos os camaradas da nossa vila. Dia 1º de Maio é o dia consagrado
ao trabalhador e por tal é festejado com alegria nos países livres. Muitas
lutas tem acontecido para que esse dia seja respeitado, até trabalhadores em
manifestações, nos seus locais de trabalho, têm perdido a vida. Aqui em
Portugal, temos um governo fascista, apoiado pela polícia pide, como o avô já
te explicou».
«Então por causa dos pides
informadores, nós tivemos de arranjar uma maneira de festejar o 1º de Maio, e
ao mesmo tempo protegermos a família. Inventámos esta "tradição" de
não deixarmos entrar o Maio. Mas o certo minha querida, é que na hora que
bebemos o licor, nós adultos, sentimos os camaradas que morreram ao nosso lado,
os que estão nas prisões da pide, os exilados, e clandestinamente vivendo.
Sentimos a esperança de podermos viver o nosso dia 1º de Maio em liberdade».
De repente, sentimos os passos da
minha mãe e rapidamente escondemos o livro "Quando os Lobos Uivam" de
Aquilino Ribeiro, no baú e sorrimos os dois, cúmplices. A minha mãe disse ao
meu avô: «Meu pai, tenha cuidado com essas conversas, ela é uma criança».
Nessa noite, ao beber o licor de
poejo e ao comer a minha broinha, o meu olhar cruzou-se com o do meu adorado e
querido avô e silenciosamente dissemos, vivam os trabalhadores! Viva o 1º de
Maio!”
Ester Cid
(ao abrigo do código do autor)
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